Só o cume interessa: Travessia Condoriri ao Huayna Potosi (Parte 3)

Dia 18 - 17/11: Acampamento base ao acampamento avançado do Huayna Potosi

"Não conseguimos controlar a natureza; é ela que seleciona os mais aptos. Podemos tentar nos adaptar, mas a palavra final é DELA. Aprendemos a ser pacientes, a viver o agora, que precisamos de quase nada para sermos felizes. Vamos esvaziando a nossa bagagem, vivendo cada vez mais leve conforme aumenta o nosso contato com a natureza."
Rumo ao acampamento alto
Acordo (ou melhor, decido me levantar definitivamente, já que não consegui dormir direito) e converso com o guia sobre a minha dor de estômago que não passava. As senhoras que tomam conta do abrigo se compadecem, e arranjam um chá de alguma planta local para eu tomar. O gosto até que não era ruim. Como alguma coisa só para não ter que começar a trilha sem energia.
Rock camp!
Hoje seria rápido. Venceríamos cerca de 300m de disnível até o rock camp em 1 hora e 50 minutos. Os australianos já haviam subido e os encontraríamos lá. No meio da trilha, passamos pelo posto de controle, onde assinamos o livro e pagamos a taxa do parque. Quando estávamos quase chegando no abrigo, encontramos algumas pessoas já descendo. O que chamou a atenção foi o brasileiro descer sem nenhum peso. Depois vimos que a choula estava carregando a mochila dele e a dela, com o seu vestido característico, com exceção da bota de montanha! rsrs
O ponto vermelho, a esquerda, é o acampamento argentino. O pico ao fundo é o cume do Huayna Potosi
Chegamos cedo ao abrigo avançado, que está a 5130msnm. Esperamos o pessoal do dia anterior fazer checkout, aproveitando para tomar um sol ali do lado de fora. Deu para ter uma boa visão panorâmica dos vales e das montanhas da Cordillera Real, e também do acampamento argentino, que é mais alto, mas não é usado mais, depois que uns argentinos morreram ali de esgotamento físico.
Mais montanhas da Cordillera Real
Na hora do almoço, conseguimos entrar no abrigo e escolher as nossas camas. Por ser baixa temporada, tinha lugar de sobra. Meu estômago tinha dado uma melhorada e consegui comer razoavelmente. O resto do dia foi apenas de descanso e observar o tempo fechar lá fora.
Janela do nosso quarto
No fim da tarde, as espanholas que conhecemos no primeiro dia chegaram. No total seríamos 6 duplas a tentar o cume na madrugada. No jantar, podemos ver a diferença que a nossa pechinchada foi: a nossa comida era muito mais simples que a dos outros grupos, compostos de americanos, europeus e australianos. Vimos que o desconto para o 'hermano brasileño' também se refletia na qualidade das refeições...rsrs. Por fim, o guia se aproximou, deu umas instruções finais e falou para dormirmos, já que levantaríamos a meia-noite para o ataque final. Tomei um dramim e um dorflex, e me retirei...


Dia 19 - 18/11: Huayna Potosi

"Todos os nossos limites são expansíveis; sempre com motivação, interna ou externa, conseguimos encontrar força quando achávamos que não tínhamos mais; tirar energia de lugares que nem imaginávamos que existiam. Enfim, superamos a nós mesmos quando já havíamos desistido."

Pontualmente, fomos acordados. Todo mundo já estava se arrumando, tomando um café composto basicamente de biscoito e chá. Rafael e eu decidimos levar apenas uma mochila, com a nossa comida e água. Aqui, foi colocada água quente nas nossas garrafas, para elas não congelarem com a temperatura de fora. Eu não quis arriscar com a roupa, e usei a calça e o anoraque da agência, que era bem mais quente. Usei dois conjuntos de segunda pele, o fleece e por fim a calça impermeável. Touca e capacete, além da cadeirinha.

Nosso guia nos chamou logo, e fomos a primeira dupla na trilha, a uma da madrugada.. Ele colocou os crampons nas nossas botas e nos encordou, eu indo no meio, já que estava andando devagar nos últimos dias. Piolet a mão, mergulhamos na escuridão, sendo iluminada apenas pela luz da headlamp e das estrelas. A subida é ritmada pela corda. Se o guia acelera e não acompanhamos, acabamos sendo arrastados, e ele tem que diminuir o ritmo. Para mim, criei uma música na minha mente: direita, esquerda, direita, esquerda, o que era interrompido por um vento mais forte de vez em quando.

Rafael começou carregando a mochila, mas ele acabou cansando mais rápido. Depois de uma hora caminhando, ele me passou a mochila, que consegui levar o resto da subida. Conforme subíamos, íamos vendo as luzes da cidade aparecer ao fundo, vários vagalumes vendo o nosso desafio. Íamos cansando mais rápido, precisando cada vez de mais descanso. Os outros grupos foram nos passando. O tempo corria. Já havíamos comido todo chocolate, tomado até o chá de coca que o guia tinha levado, e parecia que não acabava. Já tínhamos desistido umas 100 vezes, mas parecia que havíamos chegado ao fim daquela jornada...
O resto de trilha que ainda faltava para chegarmos ao cume

Estava amanhecendo e ainda faltavam uns duzentos metros de desnível (uns 1000m de trilha). Rafael e eu nos entreolhamos e desistimos em definitivo. Vimos o amanhecer dali mesmo, com os outros grupos já no cume. O guia insistiu para que prosseguíssemos, pois faltava muito pouco. Depois de uns 5 minutos de indecisão, e com a força que o Sol nos deu, prosseguimos. Os passos eram devagar, 10 de cada vez, pois já nos cansávamos. O guia nos arrastava e motivava. E assim, fomos vencendo metro a metro. Passamos pelas outras pessoas que haviam desistido, e que motivava a gente a prosseguir...
O amanhecer que vimos quando desistimos
E conseguimos! Fomos o último grupo, mas às 7:00 do dia 18/11/2015, atingimos o cume do Huayna Potosi, a 6088msnm, o ponto mais alto da minha existência. Foi mais que superação chegar ali, mais que parceria, mais que motivação, foi isso tudo junto e mais um pouco.
Visão do cume
Dez minutos depois, iniciamos a descida, o que levaria apenas duas horas. Mas isso não quer dizer que foi fácil. Eu não tinha mais energia para andar. A minha bota dupla estava apertada, o que esmagava os meus dedões  com o movimento de descida (e que resultou na perda das duas unhas depois). O Sol derretia a neve, o que a deixava mais fofa. Aquela imensidão branca refletia a luz, aumentando ainda mais o incômodo. A minha vontade era me jogar e descer rolando. A nossa água tinha acabado. Acabamos comendo um pouco de gelo mesmo, o que não é recomendado pois acaba desidratando ainda mais, mas naquele momento o alívio imediato era a melhor sensação do mundo.
Cume!
 Chegamos ao abrigo exaustos. Todos que ali ainda estavam nos parabenizou. Eu queria apenas deitar, e foi o que eu fiz, desabei na cama. Com essa experiência, entendi o porquê da maioria das mortes no Everest acontecer na descida. O guia chegou e falou que deveríamos descer, pois já havia passado do horário do checkout. Ele pegou todos os nossos equipamentos e roupas da agência que haviam nos emprestado, para descermos mais leve. Devagarinho, conseguimos chegar no acampamento base, onde o carro iria nos resgatar e levar de volta a La Paz...
Foto histórica!


Para finalizar essa postagem, escrevo o texto que o Alex me mandou antes de eu embarcar nessa aventura, para eu poder deixar registrado na parede do rock camp, junto com as mensagens de outros montanhistas que ali passaram. Eu escrevi a mensagem no dia que chegamos, e deixei para assinar no dia seguinte, caso conseguisse chegar ao cume, o que foi devidamente feito.
Pensei na irresistível paixão que leva esses homens a experimentar escaladas extraordinárias. Nada pode detê-los [...]; um cume pode exercer a mesma irresistível força de atração que um abismo. Téophile Gautier, 1968.
Minha marca junto com a de outros brasileiros
Ah sim, as mensagens em itálico que vocês leram no início de cada dia foram as minhas reflexões ao fim de cada dia de caminhada...

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